Diz que "Nosso
Senhor Jesus Cristo corria uma vez por uma estrada, fugindo dos
judeus. Morria de fome e de
sede, debaixo de um solão enorme. Já não agüentava mais de
cansaço quando avistou um
canavial. Então escondeu-se entre as suas folhas, refrescou do
calor, descansou, chupou uns
gomos e matou a fome. Ao retirar-se, estendeu as mãos sobre as canas
e as abençoou,
prometendo que delas o homem haveria de tirar boa e doce. No outro dia, à mesma
hora, o diabo saiu das fornalhas do inferno, cornos chifres e o rabo
queimados, galopando
pela estrada foi dar no mesmo canavial. Vendo o verde das canas entendeu de refrescar e
espojar-se nas folhas. As canas, porém, atiraram-lhe pelos,
começando ele a coçar-se.
Furioso, cortou um gomo
e começou a chupar; mas o caldo estava azedo, e caindo-lhe no goto queimou-lhe as
goelas. O diabo então danou-se e prometeu que da cana o homem
haveria de tirar uma bebida tão
ardente como as caldeiras do inferno.
E é por isso que a
cana dá o açúcar, por causa da bênção de Nosso Senhor, e a
cachaça, por causa da maldição
do diabo," conforme uma lenda que Alfredo Brandão colheu em
Alagoas.
Outros contam que a
seca estava braba no sertão. No céu, as nuvens carregadas de chuva passavam, indiferentes.
O gado morria nos campos sem pastagem. As árvores, já sem folhas, esturricadas, pareciam
mãos pedindo piedade, implorando chuva. Os retirantes, em bandos, soturnos, calados,
pareciam mais fantasmas caminhando pelas estradas poeirentas.
Então, um sertanejo
todo o santo dia, pela manhã, caminhava léguas e léguas para ir
buscar água num poço, para a
família beber e salvar umas touceiras de cana plantadas perto de
casa. O poço secou. Para que
as canas não morressem, o pobre homem matou um macaco que ia passando - um macaco
retirante, corrido da seca - e regou com o sangue as touceirinhas,
que melhoraram. O sangue do
macaco acabou; mas, não choveu.
Ia passando um leão
bem grande e velho, cansado, fugindo da estiagem. O homem matou o leão e todo o seu
sangue foi para refrescar as canas. O sangue do leão acabou e as
chuvas não chegaram.
Então o sertanejo que,
de bicho-de-fôlego, só tinha um porco (com licença da palavra),
teve que matar o bichinho,
comeu a carne com sua família e o sangue foi todinho usado para
regar as touceiras de cana.
Antes de ver as canas
morrerem, as chuvas chegaram, com relâmpagos e trovões. Os campos num instante
ficaram bonitos, cobertos de pastagem para o gado. As árvores se
cobriram de folhas, flores e
frutos. As canas ficaram uma beleza.
Dizem que foi por isso
que quando o homem bebe demais fica fazendo macaquices, brabo que só um leão. E,
quando cai, bêbado, ronca como um porco. Entrou pela perna do
pato, saiu pela perna do pinto e el-rei mandou dizer que você contasse mais cinco.
Fonte: MAIOR, Mário
Solto. Cachaça. Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar e do Álcool,
1970. 118p.
Ilustração: Cavic